terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Pessoas do Século Passado (ou Regurgitofagia)



Gosto de algumas velharias, hei de confessar. Não tarda muito e lá estou fazendo referência a alguém que escreveu com a pena o que até as traças já roeram. Admiro a fineza de algumas palavras que se tornaram pouco usuais, as roupas vencidas pelo mofo no embate com a naftalina. Pessoas do século passado, retrasado até, que do passado todos nós que nascemos até 2000 somos. Pessoas de séculos passados, acrescenta-se um "s", nos aquietamos e seguimos o rumo da prosa... Insisto no título para desafiar o leitor a observar daqui a 10, não mais que 15 anos, a reação de seus filhos quando a nós se referirem, nós balzaquianos, quarentões até lá, some aí os anos e faça o cálculo. Pessoas do século passado! É com esse desdém que eles nos irão fazer menção. E caso tenha boa memória, avise-me se realmente ocorreu, mas faça lembrete pois só quero conclusões daqui a no mínimo uma década.
E é através da História, da herança que nos é deixada, que chegamos a um dos objetos do texto: o marco dos 60 anos de assinatura da Declaração dos Direitos Humanos pela ONU, e a palestra do professor Chico Alencar no auditório do Instituto Multidisciplinar da Universidade Rural sobre o assunto. O meio acadêmico nos proporciona boas oportunidades de interação, a mim prega também algumas surpresas: no momento exato em que exaltava as qualidades do professor a um colega, deparei-me com o mesmo passando por mim.
- Chico! Exclamei sem nem um pingo de inibição.
- Olá! Respondeu ele com naturalidade e um sorriso.
Apertei-lhe a mão e declarei minha admiração: - Falava nesse momento ao amigo do Senhor...
- Bem ou mal? Brincou ele...
Poucos minutos depois, eu, já posicionado de modo a armar meu arsenal a fim de registrar o máximo das palavras dele, envaidecia-me durante singelos dois, não mais que três segundos com a introdução de Chico já palestrando: "Como bem frisou o amigo, estou deputado, sou professor".
Era exatamente o que eu contava ao colega antes de encontrar Chico no corredor. Admiro a forma com que evidencia sua paixão pela formação acadêmica (História) e ao mesmo tempo torna clara a sazonalidade de seu cargo público (Deputado Federal pelo PSOL/RJ). Mas vamos a fundo que o leitor não pode cochilar...
Durante a palestra, Chico lembrou que a Declaração, assinada em meio aos escombros resultantes do final da 2ª Guerra Mundial, guiada pelo sofrimento social, foi traduzida mais que a própria Bíblia Sagrada. Em meio a um debate com os universitários, concluiu-se que o documento, criado para assegurar os direitos mais primordiais inerentes à sobrevivência humana, ainda era uma utopia em nível de realização do que apregoava. Encontraram-se também alguns vilões que propiciavam o status utópico à carta sexagenária: o modelo capitalista, a propriedade privada dos meios de produção e o esgotamento de recursos naturais por conta da ganância humana, aliados a alguns paradigmas compartilhados pela nossa sociedade, como o de achar que os Direitos Humanos foram criados para proteger bandidos. "Direitos Humanos só para humanos direitos", Chico lembrou da frase discriminatória e a impregnação do American Way of Life em nossas mentes. O professor deixou-nos a refletir com a frase de outro grande colega de profissão chamado Paulo Freire, que dizia: "A suprema vitória do dominador é introjetar-se no dominado".


Daí a frente, leitor, a indignação ganha dedos próprios, aconselha-se até a ida a tomar um café caso não queira ser visto refletido nos parágrafos próximos...
"Introjetar-se no dominado" é, em termos práticos, o eterno grilhão de uma colônia cultural onde se quer ser o que não é, ou o que se estimula a ser: "Quando nascemos fomos programados a receber o que vocês nos empurraram com os enlatados dos USA de nove às seis", cantou Renato Russo em "Geração Coca-Cola". Somos o alvo da sedução medíocre do dinheiro, somos os peregrinos das compras nos Shoppings "Templos" Centers. Somos a auto-afirmação e o individualismo que nos coloca a cultuar infinitamente bens de consumo que são finitos, como se a aquisição contínua destes nos desse acesso à felicidade, onde a informação só gera ruído e a televisão projeta ídolos de lama, de fama fácil, de fome do 'seja como', 'seja ele', 'compre já', 'não perca', 'o que está esperando?'
Esperar então é o verbo preferido do nosso povo: espera-se uma vida biográfica mas tem-se apenas uma vida biológica, onde as condições materiais regem as condições subjetivas. Onde sofremos de "normose", a endemia do 'o que eu tenho a ver com isso?'. Esperamos por sermos passivos, esperamos sendo pacientes da nossa própria esquizofrenia, esperamos passos de progressos, mas ouvimos passos de preguiça, onde tudo passa, onde tudo pode, onde tudo pizza.
Onde há um século entre intenção, proclamação, gesto e ação.
Cito novamente o século, o passado, para falar de Oswald de Andrade, outro desses que só se têm registros em preto e branco, mas que as idéias seguem atuais: em 1928 Oswald escreveu o Manifesto Antropófago, que propunha a deglutição de influências estrangeiras que não deveriam ser negadas, mas ainda assim não deveriam ser imitadas. O país buscava identidade e na figura do índio canibal, que comia seres humanos não por nutrição, mas por querer incluir em si as qualidades do inimigo sem desprezar as suas, sem deixar de ser quem é: "Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Matias. Comi-o."
Em 2004, já no século vigente, o poeta Michel Melamed propôs a Rugurgitofagia, que seria então, uma forma de devolver, com quase um século de atraso, todos as superfluidades que a deglutição antropofágica nos fizera absorver, através de um estrondoso vômito. Porém, a raiz cultural parece nos ser tão entranhada, que somos consumistas desse próprio esterco, da sujidade imperceptível e saborosa. Então proponho, leitor amigo, antes do café que lhe propunha poucas linhas acima: vamos deglutir o regurgito, almoçar vômito e beber suco gástrico, temperar com ácido, a gula goela a baixo. Produzir o próprio alimento, produzir o próprio excremento, ciclicamente, consumo auto suficiente, fast-food físico.
Citando homens do passado, preso na fartura, preso no futuro.

8 comentários:

Anônimo disse...

I've heard it,on saturday.Háá!

Renatta Fassarela disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

cada dia um post maior... amei o post... e tbm adoro "velharias" rs... bjos

Anônimo disse...

nossa fiquei imaginando qm poderia ser... rs vou lincar seu blog la! p poder passar aki as vezes!!!
nem vou comentar o post pq nao pude ler!! entrei na net rapidin!
bj fui...

Anônimo disse...

"Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Matias. Comi-o."
UAU!!! hehehe... sacanagem!
Cara, dois textos e vc jah tava nos meus favoritos na primeira estrofe do primeiro texto... Sem palavras!!!

Anônimo disse...

E caro amigo fiquei sem palavras ou cem palavras para refletir.
Eu consumo e o cosume me condume sem dó e nem piedade.
Adorei.... estou aqui pensando....em alguma soção de é que existe?????
Bjs

Anônimo disse...

Rapaz, sensacional.

Vejo aqui muitas coisas que gosto (e admiro). Chico Alencar é a prova de que política e honestidade podem SIM caminhar lado a lado. E Michel Melamed é um grande gênio, acompanho o trabalho dele há um tempo, e ele sempre consegue se superar.

Sendo desse século ou não, sendo popular ou não, é bom perceber que existe vida inteligente na política, na literatura, na poesia, na filosofia, e pq não, nos blogs!

[antes de mais nada, tudo]

Que seja assim!

Abraço!

[até]

Anônimo disse...

Por que nao:)