
Era um dia místico: 19 de Março. Dia da escola, do carpinteiro, do artesão. Dia de saber se vai ter seca no Sertão, das águas de Março fechando o Verão. Dia de São José, que quase me rendeu um nome composto, proposto por meu avô. José Alan! A intenção era boa, o nome não. Era o dia de todos os anjos, de proteção, que me fizeram somente Alan naquela manhã sob aquele parto.
Um bebê que nasce e não chora... Um silêncio analítico e protestante, da dúvida de saber para onde estão fui cuspido, ou ainda a certeza de já, desde o primeiro segundo, destoar do coro, sabotar as previsões, desafiar a criação, a lei, o protocolo e o colo de quem me acolhera que, por eu não ter dado mão à palmatória, deu-me a primeira palmada na vida.
Hoje, dispenso os cometas, as felicitações rasas, os clichês, a superficialidade, o Natal fora de época, os presentes e as presenças indesejáveis, as promoções dos operadores de telemarketing, os reféns dos parabéns, os confeitos e os confetes. Hoje sou eu comigo mesmo, e sinto, e penso e logo lembro do que nem é tão saudoso, mas é saudável. Existo.
Foi o tapa no rosto do padre, seus óculos fugazes caídos na água benta... Um batismo que poderia ter me rendido quase uma excomunhão, antes mesmo de saber quem era, quem eram, a que Era eu pertencia ou qual era o erro. Nós, quando pequeninos, não damos sossego...
O caminho do mistério aponta pra dentro e nada melhor do que mergulhar em si para enxergar, ir além sem lentes de aumento. O que sou e o que sei, e o que sei por ser quem sou e o que sou por ser quem sabe, quem saberá? Quem sentirá se não a mim, a mente, sentidos, os signos e as certezas de que nada é certo.

Veio a paisagem do alto, dos sonhos. Da realidade dos canos de descarga direto no asfalto e os canos munidos de bala, a vala e a viela. A nobreza de ser pobre: a fala da favela. Vieram as descobertas do corpo, os atropelos na fala, os pelos, a pele, o púbis, as guerras, as brigas, o ferro de passar prendendo a lombriga, o não saber, não entender, o isolar-se, intimidar-se... Os livros, as notas e não ser notado, as marcas, o rosto e os rótulos.
Veio o mundo aos montes. Um sopapo: ser pop, ter papo, tomar sopa de assunto e assentar-me. Daí o rock, daí a bossa, daí a fossa e a poesia. O colégio chique, a casa em choque e o futuro em cheque. O vestibular, ser irregular, passar, não gostar, parar, trabalhar, voltar e continuar. Aprender...
A maré que leva o pai, os sonhos e a paz. A maré que nos alaga e nada alega, e logo lava a morada, o muro e a mera esperança na correnteza, que mira na incerteza, e mora no desapego, que desagrega, que fala grego e requer sabedoria e destreza. E aí o que diferencia, além das marcas, além das nádegas, além do nada que não me aprisiona: o questionamento, a indagação. – Uma vida sem isso não merece ser vivida, disse Platão.
Tem gente que acha que sabe tudo, tem gente que acha que nada sabe. Tem gente que dança e é julgado como louco por quem não sabe escutar a música. Tem gente que dança conforme a música, tem gente que compõe a sua própria... Vai entender... Quero entender! Talvez se o cérebro humano fosse simples seríamos ainda mais tolos e não conseguiríamos decifrá-lo.

Há nisso tudo uma inquietação, um tormento bom, a primeira banda, um primeiro beijo, um trago de inspiração. Por isso escrevo, pois habitamos o mesmo mundo, porque nos separamos só por espaço, não por coração. Escrevo porque a escrita é um silêncio que faz barulho, sereno, veneno ás avessas.
Escrevo e sou parte de um livro. Mas, e se a minha história é escrita por alguém que é ficção? E eu, a sombra de uma sombra? E se todos os diálogos são monólogos e a vida uma peça, um drama, a pequena peça de um jogo de encaixe.
Hoje algumas rugas ensaiam me rasgar o rosto, algumas dores nas esquinas do corpo. Eu ainda não sou nada, mas quem, ainda, é? Há um amor verdadeiro que me rege, há arte pra brincar com os sentidos e só na arte se é totalmente livre. Só com a arte nos aproximamos do indizível e construímos nossas próprias regras, nosso próprio mundo, como um Deus.
Tudo escrito? Escrevo ainda... Como se a pirâmide fosse o envelope, e a múmia, então, a carta. E aí não há lápide, haverá sempre um lápis que fará nascer sementes no meu cimento.
Escrevo pra não morrer.